30 maio 2005

Em Passos Manuel





Afirmar que o Porto é uma cidade escura é um lugar-comum conhecido, contrariado aqui por duas surpresas de luz e cor, quase contíguas, na cidade granítica: o magnífico Coliseu do Porto e a aprazível fachada do antigo Cinema Olympia.

24 maio 2005

Entre o Passeio Alegre e o Ouro

A crónica abaixo, de Luísa Dacosta, foi publicada na revista Máxima em 1992. De então para cá muita coisa mudou entre o Passeio Alegre e o Ouro. O eléctrico da linha 1, já não corre pela marginal com o sorriso Colgate estampado no rosto. Parece lento e cansado, agora que se desloca ronceiro e quase sem passageiros no trilho que partilha com os peões.
A língua de areia do Cabedelo, perdeu a magia há semanas com o início da construção dos polémicos molhes do Douro.
Também já não há dorsos curvados na apanha da bicha para o isco, nem miúdos a brincar livremente no jardim do Cálem. A Europa que trouxe a remodelação da marginal retirou-lhe o tipicismo.
Do conjunto de árvores de grande porte do Ouro, restam poucos exemplares, sobreviventes desesperados da política arboricida municipal, e até o estaleiro naval do Ouro está com um ar abandonado e decadente.
A marginal, contudo, não perdeu o encanto. Continua a valer a pena percorrê-la a pé, de bicicleta ou de eléctrico.



Tarde de Verão

«Apesar da massa das árvores, do jacto empoado de luz do repuxo, o calor pesa e amodorra o jardim. Espero o eléctrico e olho a linha do casario a alterar-se. Por isso o meu olhar se prende preferencialmente a duas casas: a que se segue à Rua das Laranjeiras com o seu rosa bolo-de-aniversário, bordado pelo branco das varandas e beiral, chovido em recorte como franja de chalinho que aconchegasse os telhados de duas águas e aquela outra de majestade antiga, vedada por altos portões de ferro, com seu jardim de palmeiras, suas varandas-terraços de deck de navio, seus mirantes, seus telhados, preciosos, como caixas nepalesas.





O calor continua e o que nos refresca é a lembrança do que não se vê: a língua de areia do Cabedelo, os barquinhos na faina, o Brasil, pequenino e breve, da avenida das palmeiras, a quietude das canas de pesca, à espera que o peixe morda, o musguento das pedras descobertas pela maré vaza.



Felizmente aparece, festivo, o eléctrico: amarelo e rosa com aquele estampado largo e achatado sorriso Colgate, para toda a vida. Toca a entrar! Deixada para trás a casa mais íntima e maneirinha do Passeio Alegre: a do poeta Rebordão Navarro, como que ajoelhada para melhor beber o encontro do rio e do mar, paramos na Cantareira, os barquinhos, presos ao paredão por longas cordas, como gadinho que não se quer extraviado. Que nome lindo e cantante! Cantareira, porquê? Porque as casas se dispõem amorosamente como os caquinhos nas cantareirinhas de brincar? Assim o dá a entender Raul Brandão: "As casas, limpas como o convés do navio, espreitavam para o mar, umas por cima das outras".





Vamos ao rés do rio. Do lado da terra casinhas baixas de porta e janela, a vida sobrante das roupas que não cabem de portas adentro em frente a acenar a deuses à outra margem, ainda a retalhos, mítica e frondosa de verdes espessos. Nas margens lodosas, floridas de asas brancas, há dorsos curvados na apanha da bicha para o isco. E começa o jardim do Cálem, com os antigos canhões de ferro, poleiro e regalo de pombas, gaivotas e meninos.



Na paragem, que dá acesso à Pasteleira, a capela de Santa Catarina espreita lá de cima do seu mirante, ainda aldeão. Continuamos na intimidade do rio, sob a massa pujante de tílias e plátanos: é o estaleiro do Ouro, onde o "Mar Pacífico" renova o cavername e o "Leixões" aguarda pintura. E, súbito, à esquerda: escadinhas, chafariz e mictório. Paragem do Ouro. Há freguesia para atravessar para a Afurada, que desce em presépio até às águas como se se preparasse para embarcar no rebanho de traineiras, que não se fez à faina. A "Flor do Gaz" já vem a meio da corrente de reflexos quebrados pela ondulação. Não tardará a atracar.»

Luísa Dacosta

12 maio 2005

Aliados - a memória futura

Como pode ser observado pelo percurso da Cidade Surpreendente, este não é um local de debate, de intervenção nem de polémica. Corresponde antes a uma visão pessoal, daquilo que a cidade tem de bom para nos oferecer e que, tantas vezes, no decorrer dos dias apressados passa despercebido.

As mensagens de correio electrónico que têm chegado à Cidade Surpreendente com sugestões para abordagem da desastrosa gestão municipal do Porto, não obterão aqui qualquer eco. O que não significa que o autor deste blogue ande a olhar para os passarinhos. Há outros sítios na web que cumprem de forma muito eficaz, o papel de dar voz aos cidadãos que não se revêem nas «empresas com alvará para exercer política» [leia-se: partidos políticos] - usando a feliz expressão de Carlos Magno, o jornalista.





A introdução acima vem a propósito das imagens de hoje, que têm como função o usufruto público de um cenário que, tudo indica, dentro em breve pertencerá à memória colectiva portuense.

Como tem sido noticiado, o conjunto monumental composto pela Avenida dos Aliados e pelas praças da Liberdade e do General Humberto Delgado, está a sofrer profundas alterações.





O que a remodelação em curso tem de mais visível, é o uso do granito no revestimento dos pavimentos, o desaparecimento da calçada portuguesa e a supressão dos espaços ajardinados.







Os passeios serão alargados e a placa central reduzida. No topo norte da avenida será construída uma fonte. A sul, a estátua de D. Pedro IV será rodada 180 graus.

Ficam aqui alguns aspectos actuais do centro cívico do Porto, para recordar no futuro, e a promessa de novas fotografias após a conclusão da actual intervenção.

09 maio 2005

«Não gosto da Casa da Música...»



«Não gosto da Casa da Música, mas vou ter de viver com ela». Foi com esta frase de Hélder Pacheco, historiador da cidade do Porto, que Beatriz Pacheco Pereira me aguçou a curiosidade para ler com atenção um artigo de opinião, publicado por si no Primeiro de Janeiro, sobre a obra de Rem Koolhaas. Curiosidade acentuada, por Beatriz Pacheco Pereira estar ligada ao mundo do espectáculo.

E o que nos diz a fundadora do Fantasporto? Que a sua posição é quase a mesma de Hélder Pacheco. Lamenta ter de se habituar a ver aquele «poliedro mal amanhado» pousado na cidade. Classifica o edifício como um monstro de egoísmo, um labirinto em betão bruto «cheio de corredores, passadiços, portas estreitas e escondidas, escadas vertiginosas e acessos dificílimos».

Como a unanimidade pode, por vezes, ser empobrecedora e apesar do entusiasmo pelo edifício manifestado neste blogue, fica aqui a ligação para o texto de Beatriz Pacheco Pereira.

03 maio 2005

O Porto com paixão

Rendo-me. Morro de amor pelo Porto. Assim que desembarco naquele cinza azulado com cabelos de nevoeiro suspensos e engulo o cheiro do Douro, sinto-me quase pura.




O Porto tem mistérios que a emoção apanha e doura e transforma e eterniza. Clássico e íntimo, distante e sereno, arrogante e terno, soberbo e entristecido, atira-me um frio matinal e uma Foz opulenta. O Porto veste-se diferente. Ousado e vanguardista, formal e de linhas discretas, desce Santa Catarina como se fosse para o jazz e enquanto o café arrefece e o cigarro descai, olha displicentemente atento para a miúda integral e leite desnatado.



O Majestic vai envelhecendo ao ritmo do cansaço, as paredes descascam-se sem pudor e sempre ao velho poeta sucede-se um velho pintor, e lá fora a rua apetece. Com paixão desvairada mordo os bombons da Cunha, doces e intensos, especiais para recordar, para amar com a sôfrega paixão de quem deixa atrás uma cama aberta e um barco fundeado no Castelo do Queijo.



Estar no Porto é marcar encontro com Chagall e insistir no mistério do azul profundo com um sorriso sépia. É desejar uma asa e ter um sussurro apaixonado. É mergulhar numa arquitectura europeia e tropeçar em Mozart e derrapar num silêncio mordaz de Agustina, e perder o pé numa tela de Resende e ganhar a voz com Eugénio. O Porto de sombras. O Porto de sol. O Porto a trabalhar ao ritmo dos comboios. As castanhas no banco da Avenida, os livros, os barcos, a Ribeira, os putos, o vento e a inesquecível música de um violino despenhado.



Quem chega ao Porto chega sempre a um lugar diferente. Será do nevoeiro, será da claridade das casas austeras, dos jardins adocicados, da iluminação, das ruas apertadas, será da sombra do rio ao fundo dos hotéis cheios de gente, sei lá, deve ser de tanta beleza indizível, irretratável, mas também pode ser da memória do teu corpo que me persegue como uma onda e me galopa. E depois até a chuva é diferente. Escorrega sobre as pedras, desliza sobre o parque, enche de cheiro inglês o bairro da Boavista, amortece suavemente o Passeio Alegre, embala-nos o orgulho de uma cidade masculina.



O Porto vibra debaixo dos plátanos e das tílias, descansa sobre as estátuas, sonha na Arca de Água e consome nos centros comerciais e na tradicional 31 de Janeiro a vaidade urbana. São atmosferas densas de cor e forma, de desejos tórridos de contenção elitista, de segredos demorados e chistosos. O Porto é um tesouro que se fixa e que apetece sempre mais. Outra noite no Aniki-Bobó, outra conversa húmida no Luís Armastrondo, a mesmíssima música do rio no corredor da Ribeira.



O Porto com paixão. No Porto me perdi a meio de uma tarde iluminada pela geometria dos teus dentes. Sedento de moliceiros, perdido de saudade medieval, envolto de mistérios barrocos, no Porto me vejo fértil e bem português, rico e altivo, mulher de palavra quente e chã, corpo musculoso, visões antigas de uma verticalidade acintosa. Rude e compacto, áspero, mulher acesa, homem voluntarioso. Todos os ângulos são possíveis para te amar, todas as paisagens no trânsito caótico, na margem de Gaia, no sobressalto das águas picadas pelo vento do Moledo, no sossego dos jardins de S. Lázaro, no mercado, no táxi na Marginal, nos lençóis do Meridien. Ou seja, no Porto todo o amor é de paixão secreta e voluptuosa, às vezes rubra outras azul-escuro, mas sempre paixão de luz contra o nevoeiro. Porque o Porto não se esquece aqui fica em posfácio o recado possível. Angustia-me. Arruivece-me. Inaugura-me outra ponte. Devolve-me o teu momento de paixão.

Mendes Ferreira