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24 julho 2007

Na poeira da memória

Na Rua de Passos Manuel há um local que desperta a atenção dos transeuntes mais atentos. Param e espreitam, surpreendidos perante um antigo armazém de tecidos que continua em plena laboração. Da estrutura do edifício, construído em 1860, aos objectos que o povoam, quase tudo ali remete para o passado. O soalho de tábua trincada, as enormes bancas de trabalho, o postigo e as divisórias em madeira do escritório, o velho cofre, uma prensa e até uma antiga balança de dois pratos e travessão, com os pesos alinhados. Numa das paredes interiores há ainda uma marca que indica ter ali funcionado uma leiloeira.



A fundação do actual armazém remonta a 1921. O Porto de então estava em pleno crescimento, constituindo um pólo de atracção em toda a região norte do país.



José Gonçalves, um dos fundadores, começou a trabalhar em Guimarães, aos 12 anos de idade. Quando chega ao Porto, para exercer a profissão de viajante, é já um jovem adulto cheio de esperança e vontade de singrar. Passa a visitar os clientes do interior do país, munido de uma mala com amostras de tecidos, e regressa à casa mãe com encomendas.



Aqui conheceu Serafim Soares Monteiro, chefe de armazém com comprovada experiência mercantil, adquirida desde 1905, ano em que principiara a trabalhar numa firma do Largo dos Lóios. Ligados por uma sólida amizade e auxiliados financeiramente por João Rodrigues Loureiro – um industrial de Valença do Minho, conterrâneo e protector de Gonçalves, que o tinha levado para Guimarães em 1906 como marçano – fundam o armazém de lanifícios Gonçalves, Monteiro & Cia., Lda. O negócio prospera rapidamente na baixa fervilhante de actividade. Compram tecidos por grosso a vinte fábricas portuguesas e quatro inglesas, vendendo depois para todo o Portugal e colónias.



Com a morte dos fundadores a firma passa para os herdeiros, que nos anos 70 compram o prédio e avançam com um projecto de modernização das instalações. Esse desígnio, que alteraria por completo o que lá encontramos, viria a ficar pelo caminho devido à instabilidade provocada pela Revolução de Abril e ao posterior desaparecimento prematuro de José Milhão, o sócio mentor da remodelação.

José Augusto Gonçalves, um dos donos actuais e homónimo do fundador, afirma que há vinte anos se contavam pelas dezenas os armazéns deste ramo no Porto. Hoje subsistem apenas uns três ou quatro.



Mostra-me uma peça de surrobeco, um pano castanho e grosso caído em desuso juntamente com o burel, como exemplo dos velhos tecidos que continua a vender, para grupos de teatro e ranchos folclóricos, a par das actuais e excelentes casimiras importadas de Itália e dos poliésteres asiáticos.



Não se queixando do negócio acrescenta que, quando aparecer um comprador para o edifício, fechará as portas e irá para casa, dissipando em pó este interessante episódio da memória da cidade.

20 janeiro 2007

Onde a tradição ainda é o que era

A singularidade da figura oitocentista da montra, deslocada no tempo há gerações, serena e levemente altiva, a par da peculiar actividade de produção de cabeleiras num ambiente fin-de-siécle, elevam a pequena loja conhecida como Cardoso Cabeleireiro, na Rua do Bonjardim, à condição de instituição urbana portuense.





Quando lá entrei estava Horácio Teixeira a «fazer a franja», a prender e a alinhar com destreza, num fio esticado, conjuntos de seis a nove cabelos. Para formar uma cabeleira são precisas 2000 fiadas destas, que podem demorar três dias a concluir. Trabalha com cabelo natural, matéria-prima que já foi mais fácil de encontrar. «Hoje os cabelos usam-se curtos; para serem trabalhados têm que ter no mínimo vinte centímetros de comprimento», diz-me.



A actividade já teve melhores dias, «no tempo em que os actores do Sá da Bandeira vestiam a rigor». «Hoje, um actor», mesmo que vá representar o papel de Luís XV, «entra no palco de qualquer maneira», acrescenta.

Nada é como era, com excepção daquele estabelecimento. Ali impera a tradição, patente num conjunto de mais de 300 cabeleiras para alugar - de senhores e de vassalos, de santos e de anjos - tratadas pelo mesmo método e com os mesmos instrumentos que eram usados há cem anos, quando a casa foi fundada.

Jerónimo Cardoso Jorge, o fundador, regressou ao Porto após ter visitado a Feira Universal de Paris em 1900, carregado de revistas e entusiasmado com o que tinha visto e aprendido por lá. Em 1906 alugou o edifício da Rua do Bonjardim, instalou a casa de família no primeiro andar e a loja no rés-do-chão, trabalhando como cabeleireiro e fabricante de perucas, capachinhos e bigodes. Chamou os sobrinhos, Manuel e António, para junto de si e, incansável, continuou a viajar por França e Espanha, donde trazia cabelo, e por Portugal e pelo Brasil, angariando clientes.



Morreu em 1920 deixando o negócio nas mãos dos sobrinhos. António desapareceu em 1973 e o irmão em 1988. Sem descendentes directos confiaram a casa a Horácio Teixeira e a Israel Matos, os seus mais leais empregados. Horácio, hoje com 61 anos, começou como aprendiz, aos 10 anos de idade, «depois de ter completado a 4ª classe». Israel foi introduzido na arte por um vizinho, empregado da loja, em 1965, quando tinha 11 anos.

A actividade da casa tem a época alta a partir da Páscoa, coincidindo com as festividades religiosas até Setembro. Nos restantes meses do ano «aguenta-se, há sempre que fazer».



Pergunto a Horácio Teixeira o que acontecerá à loja quando se cansar de exercer a profissão. Responde-me encolhendo os ombros e levantando as sobrancelhas, ao mesmo tempo que afasta os braços com as mãos abertas. Teve «três miúdos aprendizes» que se desinteressaram pela arte. Provavelmente fechará.